Derivados de “Game of Thrones” e “O Senhor dos Anéis” perdem a criatividade que marcaram as obras originais

Spin-offs de “Os Anéis de Poder” e “A Casa do Dragão” continuam atraindo pela exuberante fantasia, mas perderam os grandes arcos sensíveis e as surpresas que cativaram os fãs, ao serem impactados com algo inesperado a todo momento

A scene featuring three individuals in fantasy-style costumes, standing near a large, jagged rock formation, with a dragon statue or decorated structure in the background.

A Casa do Dragão

É quase irresistível não analisar os primeiros episódios das duas séries mais esperadas do ano, “Os Anéis de Poder” e “A Casa do Dragão”, e comparar com os primeiros episódios de suas obras originais, até porque já mostramos em outros artigos quais as boas características mais comuns do episódio piloto de uma série premiada. Como o grande “arco de amizade” entre dois personagens, que unirá a imensa história dos três filmes “O Senhor dos Anéis”, ou o arco passional dos personagens de “Game of Thrones”, como a jornada de Jon Snow na busca por valores para não ser um bastardo e os arcos gigantescos de vingança de Arya Stark contra os assassinos de sua família e de Daenerys Targaryen rumo ao Trono de Ferro.

Do ponto de vista da utilidade destes arcos, a série era recheada com “surpresas” desde o primeiro episódio, impactando o espectador com o inesperado, como a cena final da revelação de uma relação entre a rainha e o seu irmão. Já em “O Senhor dos Anéis” esses aspectos da série de surpreender o espectador tem outra função dentro do “arco da amizade”, gerando uma expectativa no espectador, sugado pelas estratégicas deste arco que permeia e dá sentido aos três filmes, de que esse vínculo de amizade poderia ser quebrado. Os valores da amizade sempre estão em jogo, e podem ser quebrados em razão da força do “anel” do mal.

A ideia aqui é revelar como existem estruturas e arcos ocultos nesses produtos, que ajudam a prender o espectador pelo “sensível”, pelo sofrimento dos personagens, que os fãs não percebem, mas sentem. Não percebem, porque esse sofrimento é encoberto pela potência de imagens fantásticas, com paisagens oníricas e medievais, com a presença de elfos e dragões, que previsivelmente agradam os fãs com algo já esperado e previsto. E eles estão gostando das séries, não se importando muito se as cópias dos produtos originais que geraram fascínio perderam em densidade de alma dos personagens, com estes arcos longos que citamos, que realmente emocionaram o espectador.

Large statue of a man with outstretched hands overlooking a city with medieval-style buildings, a river with boats, and snow-covered mountains in the background.

Cenário mágico e fantástico da série “Os Anéis de Poder”

O “oculto” que faz sentido

O que faz sentido no mundo da fantasia, dominado pelo fascínio da beleza plástica e da existência de seres com poderes mágicos, é o arco da “verdade” dos personagens, que está amparado por um “sofrimento” oculto sob essas fantasias. O público nega ter esse “sofrer”, e chega a negar até que o sofrimento exista neste tipo de filme e série. O valor dessas obras está em revelar ao espectador, através de sensações, que não existe magia ou fantasia que mude o destino do “arco do sofrimento”. Esse mundo do sofrimento, que o fã normalmente nega, porque está oculto, estava presente nos primeiros episódios da série original “Game of Thrones”, com os arcos emocionais surgindo dos “arranjos” que os personagens faziam entre si, gerando mistérios e intrigas no nível da história. Como o arco do “segredo” da rainha, que permeia todas as temporadas, de que seus filhos são bastardos.

Junto com as ações iniciais do arco da jornada de Jon Snow como Patrulheiro da Noite, também se arma a estratégia passional de como se formou sua tristeza, não somente em razão de ser afetado pela paixão da “melancolia”, mas também pela necessidade de ganhar valores para não ser considerado um “bastardo”. O início dos arcos da paixão do “ódio” em Arya e Daenerys funciona como um arco de sofrimento interno, para sugar o espectador para uma jornada de liquidação e término desse sofrimento, que no final será a realização em forma de vingança. O ódio que irá motivar a vingança é bem construído para sugar o espectador com mais força.

Essa densidade nos personagens, que não é muito comum em obras de fantasia, e que se tornou a principal atração da série, seduziu os fãs com pouca presença de dragões e bruxas, assim como serviu para estruturar a história, arquitetando a teia conspiratória da rainha Cersei Lannister, que mata a “mão” do rei e tenta assassinar uma criança, para manter o segredo de que seus filhos são frutos de incesto com seu irmão. Esse arco central do segredo é o principal gerador de sentido das ações dos personagens.

Já nos primeiros episódios de “A Casa do Dragão”, série derivada que estreou este mês na HBO Max, e que agradou muitos aos fãs como já previsto (porque fã não é crítico), esse arco da conspiração, que em “Game of Thrones” se deu para que o segredo de Cersei não fosse revelado, sendo estratégico para ocasionar um mundo de guerras e mortes, não existe mais. Assim como os sofrimentos dos personagens perderam profundidade. As jornadas dos personagens, antes imprevisíveis, agora se tornaram muito previsíveis. Sem os impactos de surpresa característicos da série original.

A intriga que dá lugar a conspiração de Cersei Lannister, agora se contenta em usar apenas um velho e batido “plot”, em que outros personagens exploram a angústia de um rei, Viserys I (Paddy Considine), por um herdeiro homem, desprezando sua filha Rhaenyra Targaryen (Emma D’Arcy), para tomar o trono. Responsável pela intriga, está um personagem afetado pela paixão do “ressentimento”, Daemon Targaryen, que se torna um inimigo da família real, da qual pertence, rancoroso (mas não com ódio), por ter sido preterido ao trono.

Já mostramos em outros artigos como cada personagem é afetado por uma ou mais paixões, como raiva, ódio, ciúmes, inveja, ressentimento, culpa e melancolia. Dentre elas, a mais utilizada é a “culpa”, mas a paixão da “melancolia” nos personagens tem transformado simples histórias em obras de arte premiadas, como a sensibilizada jornada de morte de Jon Snow, a mesma do personagem Marcello de “A Doce Vida”, de Fellini.

O personagem do “ressentimento”

Por enquanto, nos três primeiros episódios da série “A Casa do Dragão”, os bons arcos do filme que se abriam no início não estão presentes. A trama ganhou contornos a partir das ações ressentidas de Daemon, irmão mais novo do rei, que se magoa e se torna rancoroso, quando é preterido pelo irmão para assumir o trono em seu lugar. O rei o dispensa exatamente por ele ser uma pessoa “ressentida”, que poderia lhe trair, se virar contra ele por vingança. O personagem ressentido não gera muitas surpresas, pois o ressentimento é um tipo de paixão caricata, e dispensada na obra original.

As ações desse tipo de personagem, como Daemon, gerador do conflito, do ponto de vista da Semiótica das Paixões, são sempre esperadas, parecem nunca se ocultar. Tanto que o ator Matt Smith, que interpreta Daemon, faz o mesmo papel no filme “Morbius”, como Loxias Crown, o amigo de infância ressentido de Morbius, que se torna seu inimigo exatamente por mágoas e rancores do passado não resolvidos. O personagem e o ator são os mesmos no filme e na série.

A man with dark hair and a serious expression, wearing a black trench coat and a collared shirt, sitting outdoors near stone columns.

O ator Matt Smith como Loxias Crown, em “Morbius”

A man with long blonde hair and fierce expression surrounded by flames, wearing black armor with spikes.

E na série “A Casa do Dragão”, como Daemon

Seguindo esse arquétipo passional semiótico, o personagem que mais representa a paixão do ressentimento é Loki, da mitologia nórdica, o irmão adotado de Thor, que sente essa paixão pelo irmão e pelo pai Odin, baseado em danos do passado que deixou essa marca passional de mágoa e rancor.

O ressentimento é uma paixão muito estudada no campo da filosofia e da literatura, porque afeta o personagem sempre de uma mesma forma, mas se separando da simples raiva, que passa logo, e do ódio, que leva de imediato a uma vingança. Para Shakespeare, “o ressentimento é um veneno que tomamos esperando que o outro morra”, e paraNietzsche, “o ressentido é um vingativo que não se reconhece como tal, um sentimento que guarda uma vingança adiada”.

Ainda ressaltando as diferenças entre os primeiros episódios das duas séries, “Games of Thrones” e “A Casa do Dragão”, havia na série original ao menos meia dúzia de “arcos de destinos” iniciados com paixões potentes. Dentro dos incidentes iniciais da “jornada de vingança” de Arya Stark, o espectador é levado incialmente por sua raiva pelos Lannister, que se transforma em ódio e depois em vingança, em razão do assassinato dos pais. A vingança, ao contrário do ressentimento, é uma paixão que exige uma jornada de transformação, como a de Arya.

Na boa narrativa, a diferença entre o “ressentimento” e o “ódio”, que ajuda a sugar o espectador para dentro da série, é que o personagem ressentido e magoado não consegue esconder seus sentimentos, enquanto que o personagem que odeia, sim, especialmente se este ódio se torna um desejo de vingança de fato. O vingador é frio, consegue esconder suas emoções, enquanto que o ressentido é fervente, sente um tipo de raiva prolongada e difícil de controlar.

Fábula infantil sobre o valor da amizade

O sentido dos grandes arcos nos filmes da saga “O Senhor dos Anéis”, da obra de J. R. R. Tolkien, se resume a uma paixão da “amizade”, de um pacto de valor moral, bem mais fácil de se quebrar do que os efeitos da melancolia, do ódio e do ressentimento. A “paixão da amizade” tem sua origem no universo psicológico infantil, em que o valor do outro está em “ser um amigo” de verdade. Nos livros e nos filmes, o arco que absorve todas as jornadas e organiza os “valores” dos personagens está no laço de amizade entre o pequeno Frodo Baggins e o jardineiro Samwise Gamgee, que une em sentido a jornada de ação dos personagens para destruir o anel do “mal”.

O sentido da obra, que enfeitiçou os fãs além dos elfos e orcs, é essa necessidade inicial do ser humano, relacionada ao medo, de ter o primeiro valor de sua vida baseado no voto de confiança de um amigo. Ao contrário de “Game of Thrones”, com seus temas cheios de tabus, como o incesto, esta fábula foi escrita para o público infanto-juvenil, em que os personagens não têm profundidade de alma através do sofrimento gerado pelas paixões, e a expectativa de uma surpresa é a possibilidade da “quebra do contrato de amizade”.

Na nova série “Os Anéis de Poder”, o espectador não é sugado pela estratégia da possibilidade de uma surpresa vinda da “quebra da amizade” presente nos filmes, que garantiram valor à obra com um imenso plot e arco que unia os três livros. Na produção bilionária mais cara até o momento essa amizade se resume a um esquete de humor entre um humano e um anão “ressentido” pela falta de amizade entre os dois, e na possibilidade de uma das personagens principais, a elfa Galadriel (Morfydd Clark), enfrentar o poderoso Sauron para vingar a morte do irmão, e não somente para derrotar o “mal”.

A intriga central tem uma amizade infanto-juvenil, não trata de dramas intensos, mas da união de humanos, elfos, anões e hobbits contra um “mal” maior que os espreitam, sempre. Essa possibilidade de extinção de suas espécies por este mal os torna unidos e “amigos”. E o arco da relação de amizade entre os personagens Frodo e Sam se tornou secundário.

No segundo episódio surge, finalmente, cenas que mostram o “valor da amizade”, não mais com um arco sensível, mas com um “ressentimento” simples e cômico, quando o herói Elrond (Robert Aramayo) visita o anão Durin (Owain Arthur) e o encontra magoado. O ressentimento é apenas uma comédia de um anão magoado com um amigo, porque ele não foi ao seu casamento, ou ao nascimento do filho, como se fosse uma criança mimada.

A man with a large red beard and hair, wearing a fur cloak, clenched fist, and a serious expression, in a fantasy or medieval setting with armored characters in the background.

O anão Durin, em “Os Anéis de Poder”

Nestes primeiros episódios, a série “Os Anéis de Poder”, que tem belos cenários, mas sem surpresas, mesmo fantásticos não são mais belos que os filmes, abusa de metáforas estoicas, antiga corrente filosófica que hoje tem como característica a negação da verdade, com o tema central o bem contra o mal, a escuridão contra a luz, como se apenas houvesse um mundo de magia, sem que esses fãs garantidos sintam a falta da presença do sofrimento humano em seus personagens.

As obras originais viraram mitos, marcaram história, não somente pelo universo mágico e fantasioso que entregaram ao espectador, mas também porque ele estava sendo sugado pelo sofrimento da alma sem perceber. O encanto deste mundo fantasioso, que tanto emocionou fãs, não foi gerado somente pelos belos cenários e a potência dos dragões, mas embutido nesses simulacros de beleza e felicidade existia um pouco de “verdade” sobre o sofrimento das almas dos personagens, e que foi importante no fechamento dos seus arcos, iniciados nos primeiros episódios. Como ainda estamos nos episódios iniciais destas duas séries, talvez elas ocultem boas surpresas para serem reveladas no futuro, e que ainda não percebemos. É o que todos nós esperamos.